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Estive com o Marco Antônio Guimarães apenas uma vez. Foi durante minha pesquisa de mestrado, eu estava mergulhado no universo e processo criativo de Walter Smetak e me interessava saber do contato entre eles, da relação que tiveram na mítica Bahia dos anos 1970 e o quanto isso influenciou Marco como artista, pois percebia nos dois uma conexão de mestre e aprendiz pelo parentesco da investigação, o violoncelo como instrumento comum, a relação com a espiritualidade e a característica material dos seus instrumentos. Ainda que os dois, visível e sonoramente, aparentassem ter suas diferenças, era inevitável não relacionar todo o trabalho do Marco com o UAKTI à pesquisa plástico sonora de Smetak porque as evidências eram muitas.

Eu imaginava que entender o processo criativo do Marco me ajudaria a entender o processo criativo do Smetak e, como com este último não tive contato em vida, era uma oportunidade de alcançar a ponta de um fio que esteve conectado a uma série de acontecimentos fundantes da arte sonora, da música experimental e instrumental inventiva brasileira. Na época, eu morava em Campinas e viajei de carro para Belo Horizonte, levando comigo equipamento e equipe para documentarmos o encontro. À época, um dos objetivos do mestrado era fazer um documentário, que infelizmente não saiu do projeto. 

Marcar o encontro foi muito difícil e eu temia encontrar um Marco tímido e introspectivo, de poucas palavras e pouco receptivo às perguntas. Entretanto, o encontro em si foi muito além do que qualquer expectativa. Além de ser um músico genial, algo que seu trabalho já diria por si mesmo, encontrei uma ser humano especial, com uma aura incrível e cativante. O gosto pela conversa, a generosidade na troca e o encantamento provocado pela simplicidade e entusiasmo com que ele lidava com cada assunto, tudo isso me marcou profundamente. Conversamos por aproximadamente 12 horas, tocamos, almoçamos juntos, gravamos. Infelizmente esse registro se perdeu, o que guardo dele é a memória que, depois de 23 anos que me distanciam desse encontro, certamente é afetada pela precisão dos detalhes, ainda que, neste instante em que escrevo, adentre a sala de ensaio do UAKTI e me veja, jovem à escuta, completamente encantado por cada palavra falada pelo Marco e soprada através do tempo.

Marco me disse que nunca foi propriamente um aluno do Smetak e não participou de nenhum de seus grupos no Seminário Livre de Música da Bahia. Mas o trabalho do Smetak e, de certa forma, sua personalidade o atraíam. Ele costumava frequentar mais do que qualquer aluno regular a sua sala no porão da Escola de Música, escutava suas histórias e pensamentos sobre música, sobre a vida e sobre a teosofia e ali também devia passar seu o tempo interessado pelos experimentos e processos construtivos. No que levantei no acervo do Smetak, também não encontrei menções ao Marco, como há sobre outros dos seus considerados discípulos. Isso me intrigou ainda mais. Porque de fato, não há ninguém que tenha levado tão longe e de forma tão brilhante a semente de cabaça que Smetak plantou. Smetak falava que a cabaça era a sementeira. Na tradição do povo Yorubá, a cabça, Igbá, é o útero gerador de vida, Igbadu é a cabaça existencial onde se inicia a vida. 

E é interessante pensar que Marco Guimarães construiu, anos depois de ter saído da Bahia, já de volta à Belo Horizonte, seu primeiro instrumento a partir de uma cabaça, o Chori Smetano. Ele conta que no festival de Inverno de Ouro Preto, em 1971, sabendo que o Smetak estaria lá, levou para lhe mostrar, todo entusiasmado, o seu invento, a sua homenagem. Segundo Marco, o inventor suíço-baiano fez uma ou outra crítica a algum aspecto construtivo do instrumento, elogio não era algo que Smetak fazia de primeira, mas arrisco dizer que ali, naquele encontro, tenha se dado a mesma surpresa descrita por Jacques Rancière, de Joseph Jacotot, quando este retornou à sua sala aula e percebeu que seus alunos de holandês, idioma que ele não dominava, tinham aprendido francês sozinhos, durante um período em que ele teve que se ausentar das aulas. Penso que Smetak foi um mestre emancipador para Marco Antônio Guimarães, ao mesmo tempo em que lhe proporcionou uma grande epifania capaz de o fazer vislumbrar um modo novo de fazer música. 

Há uma habilidade artesã no Marco, uma capacidade inventiva que não se iniciou no contato com o Smetak e o que ele relatou foi que herdou isso de sua mãe, que tinha habilidade e inteligência artífices e realizava consertos, reparos, construía coisas em sua casa e o estimulava a fazer coisas manuais. Acho interessante pensar nas memórias desse encontro. O Marco Antônio Guimarães que eu conheci naquele dia e que hoje rememoro, para além da genialidade musical incontestável, a habilidade inventiva construtiva de uma artista-artesão-engenheiro, me fez pensar muito sobre os processos de ensino e aprendizagem, a forma de transmissão dos saberes e que para mim ficam muito claros nos jogos e estruturas composicionais que ele propõe, assim como a relação com a visualidade, o som implicado na forma geométrica, a composição implicada na ideia do jogo. Nesse sentido, suas composições me parecem que primeiro partem de um entendimento profundo sobre o funcionamento das coisas, da música, da relação da imagem com o som e da relação entre os saberes permeados pela linguagem matemática. Depois de entendimento, Marco cria estratégias para simplificar os processos, de modo a permitir o acesso a eles. Simplifica estruturas complexas, que sim, permanecem complexas, mas que são entregues em forma de jogo para permitir o acesso, a troca, a relação quase lúdica com o fazer. 

A estrutura de pensamento inventiva e construtiva do Marco me lembra muito o também inventor alemão Athanasius Kircher, um jesuíta que viveu no século XVII e que foi uma das figuras mais importantes do seu tempo, um polímata que desenvolveu projetos como o órgão hidráulico e teve seu livro Musurgia Universalis como um grande influenciador da teoria dos afetos no período barroco. Kircher desenvolveu um dispositivo de composição automática que chamou de Arca Musarithimica, que combinava padrões rítmicos, modos melódicos e harmonias prontas, além de dar a possibilidade de escolha instrumental, através de cartões dispostos como fichário que permitiam a feitura musical como um jogo combinatório, a partir da escolha desses cartões. Essa forma de estruturar o fazer musical parte da ideia de um jogo combinatório, mas também de um pensamento que revela um modo de se fazer música, um caminho pensado pelo Kircher e que, para mim, tem parentesco com a forma com que Marco desvenda o I-Ching e revela um modo de se fazer música associada à estruturação combinatória do próprio oráculo. Ou mesmo como Marco associa os tempos binários, ternários e quaternários às figuras geométricas para combiná-las na execução do 11. São estruturações combinatórias, mas são também pedagogias do fazer musical. E esse aspecto de jogo são caminhos pensados por um mestre emancipador que permite modos associativos e inventivos a partir do que é proposto.

De alguma forma, Athanasius Kircher e Marco Antônio Guimarães têm um parentesco secular, tenho certeza disso. Há um modus operandi na compreensão das coisas e na proposição criativa que merecem ser estudadas. Assim como merecem atenção essas formas de transmissão do saber que são emancipadoras em tudo o que Marco fez e é.

Ao final dessas doze horas de conversas, Marco me apresentou talvez a proposta mais fascinante, um mecanismo autômato montado a partir do motor de um tape, em que é acoplado um garrote de borracha e, na outra extremidade, uma baqueta que dança caoticamente quando o motor é ligado percutindo doze tubos de metal. O Nastaré me instiga até hoje, não só pela sonoridade, mas pelo mistério da não repetição da sequência de notas, como me alertou Marco Antônio. Imagino que esse instrumento inventado talvez tenha sido aquele que até hoje faça Marco procurar compreender sua estrutura, desvendar o seu jogo, o seu segredo. Eu, de lá para cá, vira e mexe, relembro daquela sonoridade hipnótica que leva a uma escuta meditativa.

Essa memória provocada pelo gesto de escritura deste texto revela para mim o quanto Marco Antônio Guimarães é artista por pensar e fazer como um educador e é um educador por fazer e pensar como um artista. E esse único encontro com ele foi repleto de descobertas e epifanias que ainda reverberam, assim como os sons provocados pelo Nastaré.

Marco Scarassati

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