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Marco Antônio Guimarães, inventor. A síntese desse termo adia a consciência de um maior detalhamento do que ele significa. Entender Marco Antônio como um inventor, conforme ele mesmo se define, é a senha que permite adentrar o seu mundo e compreender que, além do que dele se conhece – criador de todos os (mais de cem) instrumentos do Grupo Uakti – Oficina Instrumental, compositor da maior parte das músicas gravadas pelo grupo, além de autor dos arranjos que permitiram a atuação do Uakti ao lado de artistas como Milton Nascimento, Sting, Paul Simon, Philip Glass, dentre muitos outros – há faces de sua produção que permanecem pouco exploradas. Uma dessas faces que merece atenção mais detalhada é constituída de ideias sobre a prática musical baseadas no jogo, no acaso, no improviso. Essas ideias são, a um só tempo, capazes de expandir uma determinada noção mais tradicional de música e de dialogar com ela. Como uma constante, percebe-se, em todas as suas proposições, a marca da sua visão de mundo, de seu apreço pela simplicidade, pela imaginação e pela poesia. Qualquer avanço no sentido de explorar e compreender as faces desse poliedro de invenções deve manter em foco essas qualidades pessoais, flagrantes em cada uma de suas invenções. São muitas as propostas de prática musical improvisatória concebidas por Marco Antônio Guimarães. Algumas delas geraram, inclusive, obras fechadas, que conservam apenas parcialmente a porção aberta ao improviso. Dentre essas, os destaques estão, obviamente, ligados ao Grupo Uakti: o álbum I Ching (1993), o balé 21, composto para o Grupo Corpo (1996), peças como “11” (registrada no CD Trilobyte, 1996) e “Toalha de cerejas” (sem registro oficial). Essas obras, conhecidas por aqueles que acompanham a trajetória do grupo, se nutrem das propostas que alimentaram, também, as inúmeras oficinas ministradas por Marco e pelos outros integrantes, Arthur Andrés, Décio Ramos e Paulo Sérgio Santos. Se, como obras fechadas, apresentam a exuberância das contribuições musicais dos demais músicos, como proposições musicais abertas conservam uma das características mencionadas como essenciais, a simplicidade.

 

O olhar de Marco Antônio redimensiona o simples. Na geometria das ideias, manifesta seu encantamento pela beleza da funcionalidade. Pode-se dizer que extrai prazer estético diretamente do bom funcionamento das coisas. O encaixe das peças, a eficiência das junções, a exata proporção das partes. Todavia, enxerga muito além do aspecto utilitário: seu trabalho é despertar a vida dos pequenos objetos e dos materiais, cujos destinos, previstos pelas fábricas, pelas indústrias e pelo comércio, são desviados para o território de suas invenções. Esquadrias de alumínio, tampas de panela, copos de iogurte, garrotes de látex, tubos de PVC, chapas de vidro ou madeira, arames, colas, molas, ruelas e, claro, as ferramentas que cortam, torcem e permitem que o mundo se reinvente. Na varredura do seu olhar, que passa por miudezas, um parafuso não é menos importante que uma corda de violoncelo. Marco sabe que assim como os poemas não são feitos de ideias, mas de palavras, a beleza de um novo instrumento não está na sua descrição abstrata, mas nas soluções materiais que fazem com que ele exista e funcione. Assim, o mago desperta a vida musical de coisas desprezadas pela ânsia do descarte e pela insaciável substituição do antigo pelo novo, do fosco pelo brilhante, do pobre pelo nobre. O modo de vida que inventou para si talvez tenha origem em saber que, primeiro pelo olhar, depois pelo trabalho — que é, a um só tempo, tanto da mente quanto das mãos — o simples se agiganta.

 

Embora pródigo em inventar caminhos para práticas coletivas, Marco sempre preferiu o fazer solitário. Em vez da rotina de shows e ensaios que levassem ao aprimoramento da execução de um mesmo repertório, optou por mergulhar, sempre e cada vez mais fundo, nas suas invenções. Estas não precisariam se circunscrever ao domínio da música. Não à toa, esteve, por um tempo, morando em uma comunidade em Nazaré Paulista, onde atuou como responsável pela manutenção geral. Inventar soluções materiais para problemas de qualquer natureza é algo perfeitamente coerente com sua postura no domínio da arte e da música. Fato é que há, em Marco Antônio, uma interessante (e um tanto enigmática) dança interior que combina objetividade e subjetividade, de modo que, em seu mundo, os objetos, as plantas, os elementos da natureza, dialogam com os produtos da observação e do conhecimento humanos, passíveis de descrições textuais e imagéticas. Talvez por isso se possa denotar que nele o ato de compor vai, ao longo dos anos, deixando de ser puramente volitivo, baseado numa formação musical tradicional — que Marco possui — e passa a incorporar, cada vez mais, os dados do acaso. Na sua opção por atuar sozinho, amplia seu diálogo com as coisas ao redor e cria sua própria poética do cotidiano. À medida que se assume cada vez mais como inventor, um arco se cumpre lentamente, desde as experiências como músico de orquestra e como estudante de composição, até os dias atuais. São como os passos de um andarilho que, há muito, decidiu morar em si mesmo. Faz lembrar que um dos significados da palavra morar é compreender.

Kristoff Silva

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